PIONERISMO

Desbravando o cerrado mato-grossense
Histórias, pioneirismo e conquistas de Zeul FEdrizzi, um dos pioneiros em Campo Novo do Parecis
Podia ser só mais uma história de um pioneiro sulista que, junto com sua família, ajudou a colonizar o Mato Grosso. Só mais uma história de gente que prosperou graças ao campo. Talvez a história de Zeul Fedrizzi tenha estes temperos, mas não se resume a isso. Ela traz muito trabalho, perseverança e coragem em encarar o desafio de desbravar o cerrado e construir uma nova morada. Com estes ingredientes, nasceu Campo Novo do Parecis.
Gaúcho de Santa Maria, Zeul nasceu em 26 de março de 1940. Lá ficou apenas seu primeiro ano de vida, mudando-se junto com família – em cima de um ‘carro de boi’ – para o norte do estado, em Tenente Portela. Anos depois, foram para o Paraná, onde residiram em Barracão, Planalto e Capanema. Voltou para o Rio Grande do Sul, onde viveu por quatro anos em Frederico Westphalen, no seminário (“colégio de padres”, nas palavras do próprio Zeul). O retorno para as terras paranaenses foi a última parada antes de o Mato Grosso entrar na rota. Em uma entrevista de praticamente duas horas cedida à FATOR MT, o principal colonizar de Campo Novo do Parecis recapitula os detalhes da aventura de explorar uma terra inexplorada.
FAMÍLIA DO CAMPO
Um dos nove filhos de Orestes Fedrizzi e Amélia Lena Fedrizzi, Zeul fazia parte de uma família de agricultores. Seu pai derrubava o mato e depois plantava milho, feijão, mandioca, tudo o que fosse para consumo da família. “Criava suíno, galinha... Foi assim que eu cresci dentro da agricultura. Meu pai era desbravador”, lembra.
A família se instalou em Barracão, e Seu Orestes montou uma pequena fábrica de engarrafamento de vinhos, sem deixar a agricultura de lado. De lá, seguiram para Planalto, onde Zeul se tornou professor e, depois, funcionário público. Conheceu sua companheira de uma vida toda: Cleci. Eles se casaram em 1967, e logo depois nasceu o primeiro filho do casal, Marcus.
O TAL MATO GROSSO...
“Nessa época nós fomos morar em Dois Vizinhos. Eu trabalhava na Exatoria, os agricultores criavam suínos, e os negociantes que levavam a carga para o Sudeste, especialmente São Paulo e Rio de Janeiro, saíam de madrugada e, por isso, eu ficava responsável por emitir as guias. Uma certa vez, conversando com um tal de Pio ‘Bigatão’, ele disse o seguinte: ‘Poxa, guri, se eu tivesse a tua idade, ia para uma região que descobri esses tempos. Trata-se do Mato Grosso’, à época, uma unidade só, antes de haver a divisão e criação do Mato Grosso do Sul. Um tempo depois, aproveitei as férias para levar a esposa e o filhinho para conhecer Maracaju”, lembra seu Zeul.
Com a expansão das fronteiras agrícolas para o Centro-Oeste brasileiro, as regiões de cerrado começaram a ser ocupadas especialmente por gente que queria plantar. Dourados estava passando por esse desenvolvimento, e Maracaju não quis ficar para trás.
“Arrendamos umas terras em grupo, eu, meu sogro Seu Rodolfo, meu pai, um tio e o Eduardo, um agricultor de lá. Meu sogro alugou mil hectares. Retornei ao Paraná, busquei um incentivo junto ao Banco do Brasil, que era parte de um programa de ‘incentivo ao desmatamento’ do cerrado (podia desmatar 80% naquela época) do governo Juscelino Kubitschek. Após apresentar as garantias, em oito dias tivemos o projeto aprovado e fomos para o Mato Grosso. Compramos equipamento e plantamos arroz”.
UMA NOVA MUDANÇA
Instalados em uma terra arrendada em Maracaju e com o plantio rendendo boas colheitas, Zeul decidiu mesmo assim procurar uma área para si. O sogro havia comprado uma fazenda em Paranatinga, já no atual Mato Grosso, e assim partiram em cinco pessoas. Porém, mesmo com a posse da escritura em mãos, não localizaram a terra. “Quando estávamos quase de partida, desmontando o acampamento, desiludidos, encontramos um senhorzinho que nos deu o endereço de uma pessoa que havia medido as áreas. Fomos para Cuiabá, onde localizamos o sr. Tito Olívio. Ele nos levou exatamente até a área, mas como era de difícil acesso, decidimos não ficar lá”, relembra.
O próximo destino, então, seria Rondônia, mas nem chegaram a alcançar o estado vizinho. “Na época, [o governo] estava dividindo as áreas ao redor da BR-364 em espaços de 200 hectares, de forma arrendada. De quem era a terra? Era de quem pegasse!”. O exército montava barreiras na rodovia, e uma delas ficava em uma comunidade chamada Parecis, que inspiraria anos depois a composição do nome da futura cidade.
Após conhecerem um pouco da região, desistiram definitivamente de conhecer as terras rondonienses e acabaram por voltar a Cuiabá. No trajeto, alguns quilômetros à frente, avistou uma placa que dizia “São Paulo do Cravari, assinado o Colonizador”.
“Adentramos aquela área para ver se encontrávamos algum morador ali. Era uma terra vermelha e plana. Andamos uns 30 quilômetros e não achamos ninguém. O cerrado foi diminuindo e a terra roxa foi aparecendo, terra boa para plantar”.
O sogro de Zeul havia achado alguém interessado em comprar as terras em Paranatinga, e pouco antes de retornarem a Maracaju, Zeul comentou com Tito sobre as terras que ele havia conhecido, que hoje são Campo Novo do Parecis. Seis meses depois, Tito aparece em Maracaju.
“Eu mal o reconheci! Ele veio falando daquelas terras que eu havia perguntado. Partimos, então, eu, ele e meu cunhado rumo a Cuiabá, novamente. O dono das tais terras – se podemos assim chamar – era Paulo Podolan, eu conhecia o irmão dele lá do Paraná. Trato feito, fizemos o documento em um papel simples, sobre um balcão, mas a condição que exibi era ver as terras no dia seguinte. Eram 100 mil hectares no total, sendo 50 mil do Paulo e 50 mil nosso”.
A quantidade de terra era muito maior do que Zeul esperava, mas Tito explicou que se tratava de terras devolutas do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Pelo pagamento de seu serviço, Tito cobrou o equivalente a 150 mil em dinheiro da época e uma caminhonete C-10, vermelha.
A TERRA PROMETIDA
Chegando à região, ninguém fazia ideia de como dividir aquela imensidão. “Decidimos no cara ou coroa! Pedi coroa, mas deu cara. Mesmo assim, ele preferiu ficar com os fundos da terra, e nós com a frente. Eram 50 mil hectares de terra e eu ainda pensava: ‘o que eu vou fazer com tanta terra?’. Conversei com alguns compadres para que viessem. Um destes era o Armando Brólio. Quando fiz o convite, ele disse o seguinte: ‘se meu compadre gostou da região, eu já vou de mudança’. A primeira mudança descarregada nessa região foi a da sua família”.
Zeul voltou para buscar em Maracaju o resto da mudança, Dona Cleci e os filhos, Marcus e Marlon, além dos maquinários e gente para trabalhar.
Acostumado com menos hectares para o plantio, seu Zeul não tinha ideia do que fazer com tanta terra. Dividiu a área com o compadre Armando e sua parte distribuiu com amigos e familiares. “Por dois anos nós plantamos soja, e explodiu. Estavam muito rentáveis o plantio e a comercialização. Ainda assim, o solo poderia ser melhorado, passar por correção. Nossa intenção sempre foi encontrar gente boa para colonizar a região”.
“Na época da chuvarada a gente quase não saía, porque as estradas eram inacessíveis, e quando precisava fazer compras era em Diamantino ou Cuiabá. Comprava o necessário para seis meses, trazia num caminhãozinho. Sair da região só em caso de doença. As estradas eram muito cheias de desvios. As madeiras para a construção de casas vinham de Cuiabá ou Tangará da Serra. Em 1980, nós já tínhamos muita soja plantada, estava rendendo bem financeiramente”, detalha seu Zeul.
Além dos plantios tradicionais, o ano de 1978 marcou o surgimento de uma cooperativa, liderada pelo Sr. Soni, com a pretensão de produzir álcool a partir da cana-de-açúcar. Após várias reuniões, conseguiram os 21 membros necessários para enviar o projeto ao Governo Federal. Aproveitando o incentivo do ProÁlccol, receberam a documentação após intervenção direta junto ao então presidente João Batista Figueiredo. O projeto da Cooprodia foi aceito e subsidiado, e com o auxílio de um agrônomo, a colheita, que nas primeiras safras não passava de 40 toneladas por hectare (ton/ha), o que praticamente inviabilizava o plantio, passou rapidamente a 130 ton/ha.
DESMEMBRANDO DE DIAMANTINO
A nova fronteira agrícola ainda estava ligada ao município de Diamantino. Em 1978, já haviam muitas famílias estabelecidas, mas o receio de perder as terras era grande. O Incra estabeleceu um prazo de dois anos para que, se houvesse um dono, ele aparecesse para reivindicar a região. Felizmente, ninguém deu as caras e os moradores puderam ter os títulos provisórios.
Para a separação de Diamantino, foi preciso seguir alguns trâmites. Primeiro, foi criada uma comissão para oficializar o distrito, batizado de Campo Novo. “Para emancipação, precisamos trocar o nome, porque existia Campo Novo em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul. Para não dizer que Diamantino não deu nada de assistência nesse início, nos cedeu uma professora, mas a construção da primeira escolinha foi feita pela comunidade. E a delegacia a mesma coisa, construída pelos moradores. Em 1986, já eram mais de três mil moradores na região”.
Com a divisão do estado, sacramentada em 1977, era interessante ao governo vigente a criação de novos municípios, tanto que em 1988 vários municípios conquistaram sua emancipação político-administrativa, entre eles Campo Novo do Parecis, Nova Mutum, Lucas do Rio Verde, Campo Verde, entre outros.
“Era do interesse mútuo, tanto de Campo Novo quanto de Diamantino, que houvesse essa separação, afinal, eles não davam conta de atender nossas necessidades. Fizemos uma reunião em Tangará, porque a maioria dos donos de terra em Campo Novo morava em Tangará e em Sapezal. Era preciso escolher um candidato a prefeito. Fui um dos nomes citados. Nunca tinha mexido com política, nem sabia como era! Eu era agricultor, apenas. No fim das contas, acabei sendo candidato único. Também deu trabalho para montar a Câmara de Vereadores porque faltavam candidatos”. A emancipação foi feita em 4 de julho.
NASCIMENTO DE CAMPO NOVO DO PARECIS
Para que o município pudesse se desenvolver, eram necessárias certas melhorias, entre elas construção e pavimentação de estradas da região. O Governo Estadual, porém, em nada contribuiu – estava praticamente quebrado à época. “Para que eu não entregasse o cargo de prefeito logo no início, me reuni com os vereadores e pedi a aprovação de uma Lei em que todo agricultor que plantasse soja no município pagasse 1% em cima Da produção. Fizemos a venda de soja verde para poder começar o trabalho. Com o dinheiro, fui para Cuiabá comprar o maquinário para o novo município”.
Com auxílio da comunidade, Campo Novo do Parecis ia crescendo. O prédio da Prefeitura oi construído pelo Sr. Vonei de Morais, que emprestou sem cobrar aluguel. “Aos poucos fomos construindo praças, ginásios, escolas. Precisávamos pagar os funcionários públicos, então efetivamente começou a ser uma Prefeitura. Com o passar do tempo, o município foi chamando atenção para que pessoas de fora viessem também. O comércio começou a se desenvolver, abriram escritórios de contabilidades, advocacias, supermercados. Foi o deslanchar do município. Quando eu assumi eram apenas 70 casas construídas, e em poucos anos esse número subiu para mais de 300”. Após o mandato como primeiro prefeito, seu Zeul conta que nunca mais concorreu a nenhum cargo político.
A CAMPO NOVO DO FUTURO
Hoje com quase 80 anos, Seu Zeul tem menos preocupações do que quando chegou ao Mato Grosso. Com a vida consolidada, um dos pioneiros projeta o futuro do município.
“Eu vejo Campo Novo do Parecis como um dos maiores municípios quanto à renda per capita. Além da agricultura, a indústria também está chegando, e a logística, que era péssima, está melhorando. O Brasil um dia vai ter uma saída para o Oceano Pacífico, e não vai demorar, e Campo Novo está nessa rota. Pode ser que eu nem veja, mas acho que não vai demorar para isso acontecer. No máximo em 15 anos a ferrovia estará funcionando. Porém, tudo isso depende de política, de governo”.
E o sentimento? “Eu me considero um homem realizado, porque tudo o que foi deixado na minha mão, progrediu. Meus filhos ajudam, tomaram frente, tenho netos já trabalhando junto com eles”.
COMPRANDO À VISTA
Com auxílio da comunidade e o dinheiro dos impostos, fui a Cuiabá comprar equipamento. Ninguém acreditava que era à vista, pela Prefeitura, e precisava de nota fiscal para comprovar o gasto. Alguns se negavam a vender, e eu ameacei comprar equipamentos vindos de São Paulo. Quando o gerente ouviu isso, correu para negociar. Falei que o pagamento ia ser com cheque no meu nome, mas a nota precisava ser em nome da Prefeitura. Ele perguntou como eu havia conseguido o dinheiro, e expliquei que era com 1% da colaboração dos produtores. Comprei três patrolas, duas pás carregadeiras e cinco caminhões caçamba.
DONA CLECI BATEU O PÉ
Se eu cheguei a me arrepender de ter deixado Maracaju? Sim, pensei em abandonar tudo e voltar. Mas minha esposa bateu o pé para que ficássemos, ficássemos por nossos filhos. Ela sempre foi minha companheira, sempre esteve junto comigo, me apoiando. Eu fui desbravar, mas eu tinha ao meu lado uma companheira que cuidava da retaguarda. Hoje, nossos filhos estão com o ‘pé de meia’ começado, em que se planta cana, girassol, algodão, milho, soja e feijão, além da pecuária de engorda. A família está estabelecida, e essa é uma alegria de ter feito parte da história desse lugar, totalmente novo, e ter ajudado a construir um lugar que prospera cada vez mais.
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Dados do Município

CAMPO NOVO DO PARECIS
Campo Novo do Parecis é um município brasileiro distante 401 km da capital Cuiabá, localizado no interior do estado de Mato Grosso, região Centro-Oeste. Conforme o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), sua população foi estimada em 36.143 habitantes, em 2020.
A cidade possui a 9ª maior economia do estado, com PIB (Produto Interno Bruto) dos Municípios de R$ 2.933.729.000 (aproximadamente R$ 2,93 bilhões).
A força de Campo Novo está na agropecuária, que movimenta R$ 1,1 bilhão/ano. Maior produtor nacional de girassol e pipoca, possui cerca de 42% do território destinado às safras de grãos. Dados apontam que, em 2019, foram colhidas 3,11 milhões de toneladas (t) de cana-de-açúcar, 1,18 milhão/t de milho (segunda safra) e 1,27 milhão/t de soja. Também se destacam no setor do agronegócio algodão, sorgo e amendoim.